Esta é uma pergunta fundamental que deve ser resolvida antes que possamos prosseguir: São esses cantos/orações realmente de Deus? É essencial que sempre abordemos as Escrituras com uma boa Teologia Bíblica da Inspiração das Escrituras. Examinar qualquer parte da Bíblia com uma reserva a respeito de sua origem divina é perigoso. Devemos ver que não podemos basear nossa aceitação desses salmos como a verdadeira Palavra de Deus em nossa própria resposta a eles. Muitos cristãos permitiram que sentimentos instintivos de repulsa ou choque quanto a linguagem desses Salmos fizesse com que eles rejeitassem tais palavras inspiradas como Escritura.

Naturalmente, muitas pessoas rejeitam a Bíblia como a Palavra inspirada de Deus. Alguns escolhem culpar sua incredulidade pelas “inconsistências” que encontram em suas páginas, e frequentemente citam a diferença entre a linguagem desses salmos e o “espírito de amor no Novo Testamento” como um exemplo. Quando os infiéis declarados abertamente repudiam os Salmos, quase não nos surpreendemos. O que nos assusta é ver cristãos professos fazendo o mesmo. Então perguntamos: O que alguns cristãos famosos disseram a respeito dos Salmos Imprecatórios? Prepare-se, porque você reconhecerá alguns nomes conhecidos e altamente respeitados entre os opositores!

Cristãos renomados e os Salmos Imprecatórios

Estudiosos da Bíblia cuja compreensão da doutrina da inspiração foi determinada unicamente pelos padrões humanos não nos assustam indevidamente quando questionam a origem divina dessas orações particulares. Quando o critério de uma pessoa para determinar a canonicidade de uma determinada passagem é seu próprio senso do bem ou mal, ele provavelmente rejeitará pelo menos alguns dos Salmos, junto com outras passagens da Escritura. Assim, quando confrontado com as dificuldades apresentadas pelas maldições fortemente formuladas dos Salmos, ele pode concluir naturalmente com John Bright que “não podemos exigir que a Bíblia nos dê nada além de ensinamentos corretos e instruções morais seguras e sermos ofendidos quando não o faz”1.Ou como John J. Owen (não o Príncipe dos Puritanos), disse sobre os salmos de imprecação: “essas formas de expressão são de uma crueldade tão fria e maligna, a ponto de impedir por um momento, a ideia de que foram inspirados por Deus”2.

No entanto, nos surpreende e nos entristece ver teólogos evangélicos que respeitamos começarem a reclamar e tropeçar quando se aproximaram dos “salmos de justiça”. Porém, nossa crença na doutrina da inspiração não deve ser abalada mesmo quando ouvimos “autoridades aceitas” atacando a Palavra de Deus. Pelo contrário, devemos certamente questionar a doutrina das Escrituras realizada por qualquer um que reduza a inspiração a um mero discernimento religioso. J. I. Packer assinala proveitosamente o fato trágico de que, na teologia moderna:

É permitido a Escritura uma autoridade relativa, com base na suposição de que seus autores, sendo homens de discernimento, provavelmente dizem muito do que é certo; mas isso está em vigor para negar às Escrituras a autoridade que pertence adequadamente às palavras de um Deus que não pode mentir. Essa visão moderna permite expressamente a possibilidade de que às vezes os escritores bíblicos, sendo filhos de seu tempo, tivessem suas mentes tão estreitas por fatores condicionantes em seu ambiente que, embora inconscientemente, tenham distorcido e deturpado a verdade de Deus. E quando qualquer ideia bíblica específica atravessa o que os homens de hoje gostam de pensar, os protestantes modernos são fatalmente propensos a concluir que este é um caso em questão, onde a Bíblia viu as coisas distorcidas, mas hoje, diferentemente condicionados, podemos vê-las diretamente3.

À luz desses fatos, deveríamos ficar chocados ao saber que o Manual Bíblico de Halley, uma obra-padrão de referência cristã, afirma, sem se desculpar, que esses salmos “não são os pronunciamentos de Deus sobre Sua ira sobre os iníquos; mas são as orações de um homem por vingança contra seus inimigos, exatamente o oposto do ensino de Jesus de que devemos amar nossos inimigos”4.

Este best-seller evangélico amplamente reconhecido prossegue para justificar sua heresia com a teoria de que “nos tempos do Antigo Testamento, Deus, em certa medida, por conveniência, acomodou-se às Ideias dos Homens. Nos tempos do Novo Testamento, Deus começou a lidar com os homens de acordo com Suas Próprias Ideias [sic]”.5 Essa explicação ensina, sem nenhuma vergonha, que as orações do salmista estão em desobediência a Deus. Outra opinião infeliz foi proposta pelo The Pulpit Commentary, ao comentar o Salmo 35: “Assim, com este e outros salmos imprecatórios, eles nos dão, não o preceito de Deus, mas as orações defeituosas do homem”.6 Um discípulo de Cristo pode aceitar tal conclusão?

Ficamos ainda mais decepcionados quando encontramos até mesmo o instigante C.S. Lewis no campo dos manifestantes. Ele realmente fala desses salmos como “satânicos” e “diabólicos”! Inicialmente, podemos nos sentir confusos quando vemos este venerado autor usando tais adjetivos terríveis para se referir às Escrituras. Mas quando suas palavras finalmente penetram em nossas mentes, ficamos indignados! Não é de admirar que o grande teólogo e apologeta reformado Cornelius Van Til tenha dito:

Alguém poderia pensar estar lendo um humanista moderno ao invés de um cristão evangélico quando ouve Lewis falar do caráter “diabólico” dos sentimentos do salmista como por exemplo, expresso no Salmo 109.7

Lewis cai na armadilha de julgar os Salmos por seus próprios instintos e termina condenando-os:

O ódio existe – purulento, exaltado, indisfarçado – e também devemos ser perversos se de alguma forma tolerarmos ou aprovarmos, ou (pior ainda) o usamos para justificar paixões similares em nós mesmos.8

Embora ele busque “entender” a iniquidade dos inimigos do salmista que causou o clamor a Deus por vingança, sua conclusão a respeito das orações do salmista é que “elas são realmente diabólicas”. 9

Se nossa busca por ajuda na compreensão desses salmos nos leva ao The Word Biblical Commentary, que afirma ser “uma vitrine da melhor educação crítica evangélica para uma nova geração”,10 somos novamente levados ao erro. Aqui Peter C. Craigie explica as “passagens problemáticas” nos Salmos como:

“as reações reais e naturais à experiência do mal e da dor, e embora os sentimentos sejam em si mesmos maus, eles são uma parte da vida da alma que é exposta diante de Deus em adoração e oração”.11

Ele toma esses gritos de angústia como expressões do ódio e do pecado do salmista contra seus inimigos e diz: “O salmista pode odiar seu opressor; Deus odeia a opressão. Assim, as palavras do salmista são muitas vezes naturais e espontâneas, nem sempre puras e boas”.12

Ao usar tais palavras, Craigie nega que esses salmos façam parte da lei pura de Deus. “As palavras de Javé são palavras puras” (Sl 12.6, ASV; ver também Sl 19.8; 119.140). Finalmente, Craigie declara abertamente que “esses salmos não são os oráculos de Deus”.13

É importante que saibamos o que os comentaristas disseram. É até possível que algumas pessoas em nossas próprias congregações possam tirar as mesmas conclusões. Mas devemos buscar um entendimento bíblico dessas passagens!

Então, qual deve ser a nossa resposta a tudo isso?

Como o povo de Deus que recebe a Sua Palavra como verdade (e especialmente os ministros que proclamam essa Palavra), não é nosso chamado justificar todos os atos e palavras do povo de Deus nas Escrituras. Obviamente, eram homens pecaminosos que caíram em muitos erros graves. Contudo, os Salmos não são apenas palavras e atos de homens: Eles são parte da revelação de Deus acerca de Si mesmo e de Seus atributos, e são reafirmados pelo Novo Testamento como a Palavra autorizada de Deus e de Seu Cristo.

Um exemplo muito claro do Novo Testamento citando com aprovação uma imprecação dos Salmos é dada no início da igreja do Novo Testamento. Em Atos 1.20, o apóstolo Pedro diz: “Porque está escrito no Livro dos Salmos: Fique deserta a sua morada; e não haja quem nela habite; e: Tome outro o seu encargo.” Estas duas citações são tiradas de dois dos mais notórios de todos os salmos imprecatórios: Salmos 69 e 109. Eles são aplicados a Judas, que traiu o Senhor Jesus. Pedro está aqui citando uma invocação de julgamento e uma maldição contra o traidor do Ungido de Deus.

Em 1886, William Binnie, professor de História da Igreja no Free Church College em Aberdeen, Escócia, interveio alguns comentários interessantes nesta discussão:

A frequência com que as Escrituras do Antigo Testamento são citadas pelo nosso bendito Senhor e pelos escritores do Novo Testamento. . . foi sempre e justamente considerado um forte testemunho da autoridade plenária das antigas Escrituras. Sendo assim, é notável que os salmos em discussão tenham sido considerados dignos de uma parte eminente dessa honra. O sexagésimo nono, por exemplo, que ostenta mais do caráter imprecatório do que qualquer outro, exceto o centésimo nono, é expressamente citado em cinco lugares distintos, além de ser mencionado em vários outros lugares.14

Traduzido e adaptado da Obra de James E Adams: “’Salmos de Guerra do Príncipe da Paz – Lições dos Salmos Imprecatórios” (P&R Publishing: 2016).

Por Rev. Alan Kleber Rocha

1. John Bright, The Authority of the Old Testament (Grand Rapids: Baker, 1975), p. 236.

2. John J. Owen, “The Imprecatory Psalms”, The Bibliotheca Sacra and American Biblical Repository 13 (July 1856): 552.

3. J. I. Packer, Introduction to The Doctrine of Justification, by James Buchanan (London: Banner of Truth, 1961), p. 5.

4. Henry H. Halley, Halley’s Bible Handbook (Minneapolis: Grason, 1962), p. 191.

5. Ibid.

6. H. D. M. Spence and Joseph S. Exell, eds., The Pulpit Commentary, vol. 8, The Psalms (Grand Rapids: Eerdmans, 1962), p. 270.

7. Cornelius Van Til, Christian Theistic Ethics (Nutley, NJ: Presbyterian and Reformed, 1980), p. 85.

8. C. S. Lewis, Reflections on the Psalms (New York: Harcourt Brace Jovanovich, 1958), p. 22.

9. Ibid., p. 25.

10. Peter C. Craigie, Psalms 1-50, Word Biblical Commentary Series 19, ed. Bruce M. Metzger (Waco, TX: Word, 1983).

11. Ibid., p. 41.

12. Ibid.

13. Ibid.14. William Binnie, The Psalms, Their History, Teachings and Use (London: Hodder and Stoughton, 1886), pp. 276-77.