“Vamos à igreja para adorar a Deus, e isso é feito dando, não recebendo”.

Declarações feitas nesse sentido, a respeito da adoração corporativa do povo de Deus, abundam na literatura e nas conversas cristãs. Elas parecem bastante convincentes. Afinal, as Escrituras nos asseguram que “é mais bem-aventurado dar do que receber”. E a etimologia de nossa palavra em inglês “worship” – aparentemente de um termo do inglês antigo que significa “atribuir valor” – se presta, talvez, a uma visão da adoração como um ato de dar algo a Deus (nota do tradutor: a palavra “adoração”, do latim adoratione, traz o mesmo sentido da palavra em inglês).

Na realidade, tais declarações – com certeza, ao contrário das intenções daqueles que as fazem – revelam mal-entendidos sobre porque nós, como cristãos, nos reunimos para a adoração corporativa, e quem está realmente presente quando o fazemos. Na verdade, tais declarações – tomadas pelo valor nominal – podem ser argumentadas como constituindo uma reversão total dos ganhos obtidos na época da Reforma Protestante quanto ao nosso entendimento do que a adoração realmente significa.

Na igreja do período anterior a Reforma (conhecida também como pré-reforma), a adoração era amplamente concebida como um encontro entre Deus e seu povo. No entanto, era um encontro em que Deus tinha muito pouco a dizer – pelo menos em palavras que as pessoas pudessem entender. A liturgia do culto incluía seleções da Bíblia em latim, mas a exposição das Escrituras – isto é, a pregação – não era considerada essencial para a adoração e muito raramente ocorria nas ocasiões em que o povo de Deus estava reunido em sua igreja paroquial. Portanto, o povo não estava recebendo nenhuma palavra inteligível de Deus em suas reuniões, não por culpa Dele ou deles, mas de seus líderes espirituais.

A peça central do culto medieval não era o sermão, mas a celebração da Eucaristia (Ceia do Senhor). Pão e vinho eram colocados sobre uma mesa (o “altar”) posicionada contra a parede leste do espaço de culto, e um sacerdote ficava naquela mesa de costas para o povo – simbolicamente representando-o diante de Deus – e consagrava esses elementos, efetuando assim (no entendimento medieval) a transformação milagrosa desses, no corpo e no sangue de Cristo. O sacerdote então levantava os elementos acima de sua cabeça, oferecendo-os a Deus Pai como uma propiciação pelos pecados do povo.

O cerne da adoração medieval, portanto, consistia nas pessoas dando algo a Deus; algo que elas acreditavam à luz de seus erros, apaziguaria a ira de Deus. O povo se contentava em ver o ritual eucarístico de uma distância considerável em suas igrejas, ou às vezes simplesmente em saber (pelo toque de um sino) o que ocorreu de sua localização atrás de uma tela que dificultava sua visão do evento, mas supostamente preservava sua mística.

O povo raramente sentia qualquer necessidade urgente – apesar da ordem de Cristo na instituição da Eucaristia de “tomar e comer” – de consumir os elementos (ou pelo menos aquele elemento singular, o pão / corpo, que estava disponível para eles). Afinal, a questão toda era dar a Deus, não receber algo dele, e isso já era realizado por meio da mediação do sacerdote oficiante.

A Reforma implicou em uma grande reformulação do culto, de acordo com a recuperação do ensino bíblico sobre uma série de assuntos, especialmente a justificação pela fé. Como suas contrapartes medievais, os Reformadores conceberam o culto como um encontro entre Deus e seu povo:

“Onde quer que os fiéis… estejam reunidos para se envolver em atos solenes de culto religioso, [Deus] está graciosamente presente e preside no meio deles.”

– João Calvino

Porém, os Reformadores atribuíram um papel muito mais ativo e generoso a Deus em tais reuniões, na concepção de Calvino uma realidade antecipada a Deus presidindo na adoração.

Assim, por exemplo, os Reformadores reconheceram a importância de deixar – ou melhor, ouvir – Deus falar na adoração, por meio de palavras que o povo pudesse entender. A fé pela qual os pecadores são justificados se apoia na promessa do perdão de Deus em Cristo. De modo que, os reformadores perceberam que o ponto central do culto deve ser a proclamação de Deus, por meio da boca de seus ministros, de sua promessa (o Evangelho) para o seu povo. Essa constatação envolveu uma mudança significativa na mobília da igreja; o púlpito – um pedestal útil para a Sagrada Escritura e um símbolo da comissão do ministro de falar em nome de Deus – substituiu o altar como o principal ponto focal no santuário.

A celebração da Eucaristia não foi abandonada no culto reformado, mas foi significativamente reconfigurada. Os Reformadores negaram que a devida observância da Ceia envolvesse o sacerdote, representando o povo, oferecendo o corpo e o sangue de Cristo a Deus Pai como uma (re)propiciação pelos pecados; tal conceito estava em total oposição ao ensino claro das Escrituras sobre a suficiência e a finalidade do sacrifício de Cristo pelos pecados de seu povo na cruz (Hb 10.14).

Os Reformadores não rejeitaram inteiramente a noção de que Jesus Cristo está presente na Ceia, mas eles inverteram a direção da transação que ocorria naquele evento. Eles reconheceram a Ceia como um acontecimento em que Deus oferece seu Filho para seu povo, para o aumento de sua fé e sua união e comunhão com ele. Os Reformadores nunca chegaram a um consenso sobre como exatamente Cristo estava presente e era oferecido a seu povo na Ceia, contudo, eles concordaram em ver a Ceia como uma ocasião para Deus dar um presente extraordinário – na verdade, seu próprio Filho – para aqueles que estão pela fé equipados por Deus para recebê-lo.

Essa compreensão da Eucaristia também acarretou uma mudança significativa na mobília da igreja. O altar, rebatizado de mesa da comunhão, foi retirado da parede. O sacerdote, rebatizado de ministro, deu a volta na mesa e ficou de frente para o povo, preparado para oferecer um dom extraordinário de Deus ao povo de Deus. O povo, acostumado a ir à igreja para dar algo a Deus por meio de seu mediador sacerdotal, de repente se viu confrontado (por assim dizer) por um Deus ativo, onipotente e generoso, que por meio de seus ministros, tanto no púlpito quanto na mesa, tinha toda a intenção de dar-lhes algo.

É preciso notar que os reformadores se recusaram a reduzir as dádivas de Deus para o seu povo através da adoração, a meras informações sobre ele mesmo ou símbolos da pessoa e obra de seu Filho, desconectados dessas realidades. O que Deus dá ao seu povo, eles insistiram, é propriamente seu Filho Jesus Cristo, como a base de sua esperança. Por meio da proclamação das promessas de Deus recebidas por meio da fé forjada pelo Espírito, Calvino escreve:

“Cristo… nos envolve em seu corpo, para que possamos nos tornar participantes de todas as [suas] bênçãos.”

O comentário de Calvino a respeito da Ceia se aplica igualmente à pregação: “Não tenho dúvidas de que ele realmente dará e eu receberei.” O que Deus “verdadeiramente dará” por meio da Palavra e do Sacramento é o próprio Cristo.

Portanto, devemos ser cautelosos ao descrever o culto como basicamente um ato de “dar, e não receber”. Quando descrevemos a adoração nesses termos, corremos o risco de retornar aos padrões de pensamento do período anterior a Reforma, que apresentava Deus como inteiramente passivo, possivelmente até esperando para ter sua ira apaziguada, em nosso encontro corporativo com ele. A afirmação das Escrituras de que “é mais bem-aventurado dar do que receber” (At 20.35), se aplica ao relacionamento cristão de uns com os outros, e não pode ser significativamente aplicada a um encontro entre pobres pecadores como nós e o Deus todo-poderoso, o doador de “toda boa dádiva, e todo o dom perfeito” (Tg 1.17).

Certamente, devemos dar a Deus em adoração quando respondemos às suas dádivas para nós com cânticos de gratidão, súplicas e dízimos. E nosso anseio por suas dádivas para nós é em si, uma espécie de oferecimento a Ele:

“Eu entrego a ele minha alma para ser alimentado com tal comida.”

 – João Calvino

Porém, nosso encontro com Deus em adoração continua sendo principalmente uma questão de receber da nossa parte, não de dar alguma coisa. Como poderia ser diferente? Como Lutero disse apenas algumas horas antes de morrer:

Wir sind pettler! Hoc est verum.

“Nós somos mendigos! Isso é verdade.”

Dr. Aaron Denlinger é professor de História da Igreja e Teologia Histórica no Reformation Bible College.

Fonte: www.ligonier.org

Tradução: Rev. Alan Kleber Rocha